domingo, 15 de outubro de 2017

Histórias de mulheres: a lua de Johanna.



Johanna ter Steege (1961-)
 
 
 
Não tenho, mas gostava de ter. Obviamente, não estou a referir-me à menina holandesa apresentada acima na sua virginal pureza, mas aos The Stanley Kubrick Archives, editados pela Taschen e que até, vendo bem, nem são caros de todo: 14,99 euros, ou seja, um cêntimo abaixo das 15 moedas únicas para enganar o freguês inacuto. Se tivesse o livro dos arquivos do Kubrick Lubrick, poderia falar mais do assunto; não tendo a obra, ficamos por aqui, que é dado de bom grado.
Tenho, e pois claro que não vendo por 14,99 euros, o catálogo da exposição que por cá passou no CAM da Gulbenkian, da dupla de gémeas Jane & Louise Wilson. A mostra foi exibida em 2010 e levava o nome, arrevesado e pouco original, Tempo Suspenso/Suspending Time. Para quê tanta conversa se, no fundo, no fundo, do que se tratava era de uma retrospectiva, e boa e bela, dos trabalhos cá da nossa Jane e da nossa Louise? Prosseguindo a história, há umas imagens da Januária e da Luiza Wilson que me prenderam a atenção e que se chamam «The Stanley Kubrick Archives». E há outras, de 2006, intituladas «Unfolding the Aryan Papers» que ainda me chamaram inda mais a atenção, apesar de se tratar de cenas tiradas de um filme de 17 minutos e 30 segundos, ou seja, uma coisa rápida com uma rapariga loira sempre vista de costas (há algumas passagens em que lá lhe vemos a cara tristita, mas, no final do dia, são poucas essas passagens frontais). Para saber mais: aqui.
O catálogo, que é bom, tem dois textos estimulantes, «Tempo Suspenso», de Isabel Carlos, e «A Arte da Articulação», de Mark Cousins, que, como o nome indica, deve ser primo das gémeas e, portanto, emite parecer muito laudatório ao que elas me andam a fazer desde os anos noventa do século passado (a primeira obra em vídeo das internacionais britânicas, Hypnotic Suggestion 505, é de 1993 – mas por que raio é que escolhem sempre nomes crípticos e elípticos do tipo não-se-percebe-nada para as coisas que amostram aos públicos? Apre, mania de complicar). O Hypnotic foi filmado, vejam lá, na desactivada Fábrica de Moagens Harmonia, na zona do Freixo, cidade do Porto, que ao que sabemos ainda continua desactivada, em estado comatoso.
Depois do Hypnotic, as manas Wilson meteram-se a cantar Songs For My Mother, que «regista a relação entre uma actriz e uma figurinista bósnia que falam sobre emigração», ou seja, deve ser uma coisa muito linda e muito interessante para a generalidade das pessoas cultas mas sobretudo para quem aprecie figurinistas bósnias a falar de emigração. Pelo que leio no catálogo, Louise e Jane trabalham tudo com réguas e aquilo em que trabalham mete Leibniz e Spinoza lá para dentro, mas isto é tudo muito conceptual pelo que vamos passar aos Papéis Arianos, não sem antes dizer que, sendo gémeas e britânicas, ambas nasceram no mesmo ano de 1967 e, pasme-se, no Reino Unido.

.....Unfolding The Aryan Papers foi exibido pela primeira vez em 2009 no British Film Institute, instituição benemérita que edita uma belíssima colecção de monografias sobre filmes, umas das quais, dizem-me que competente e razoável, sobre o Eyes Wide Shut, que  – e perdoem a graçola – Stanley Kubrick dirigiu pouco antes de fechar os olhos. Sozinho em casa, ao que dizem, como outros nomes do grandioso bizarro, entre os quais um cantor francês cujo nome agora não me ocorre.





Morreu Kubrick de noite, enquanto dormia, depois de ter montado o filme e de ter tido uma antestreia entusiástica com a Warner Brothers, Tom Cruise e Nicole Kidman, a ponto de confidenciar a um moço dos escritórios da Warner em Londres, com quem tinha mais à-vontade, que aquele era «o meu melhor filme». No dia seguinte, 7 de Março de 1999, morria de coração aos 70 anos, sendo sepultado cinco dias depois perto da sua árvore preferida, em Childwickbury Manor (como este nome Childwickbury era difícil de escrever, optei por copiar todas mas todinhas as informações aqui presentes do livro da Taschen, Stanley Kubrick. A Filmografia Completa, que é do Paul Duncan e está mesmo aqui à minha beira, neste preciso instante, aberto na página plagiada).

 


 



 
 
 

Antes disso, Kubrick pensara fazer uma película levezita sobre o Holocausto, mas desistiu quando A Lista de Schindler se lhe atravessou ao caminho e viu que, dada a concorrência do couraçado Spielberg, não adiantava explorar essa temática nos tempos mais vindouros. E aqui é que entra a rapariga que estava, e creio que ainda está, lá em cima, na portaria da posta. Chama-se Johanna ter Steege e nasceu nos Países Baixos em Maio de 1961. É, portanto, neerlandesa. Em 1993 foi membro do júri do 43º Festival de Cinema de Berlim, depois de ter debutado em cena aos 1988, com um percurso pouco notável no mundo do cinema, digamos assim com boa vontade. Até a Wikipedia se refere a ela, em direitas contas, como a actriz que era para fazer e esteve quase-quase a fazer um filme com Kubrick e depois não fez só porque este não quis fazer. É verdade absoluta, como tudo o que vem na Santa Wiki. O autor de 2001: Odisseia no Espaço e de Laranja Mecânica, entre outras co-produções série B do Grupo Lena e do dr. Salgado, andava muito empenhado em adaptar ao écran o livro Wartime Lies, de Louis Begley, uma novela semiautobiográfica que tem por protagonistas dois membros de uma família de classe média-alta da Polónia, além do Prof. Doutor Armando Vara, à caixa. O cenário oscila, pois, entre a Polónia ocupada pelos malandros dos nazis e o honestíssimo balcão da CGD de Vinhais, concelho de Bragança, onde a clientela era atendida por um cavalheiro que, reza a Wiki, que não mente, teve a proeza de concluir uma pós-graduação em Gestão Empresarial no ISCTE sem ter feito qualquer graduação ou licenciatura, dado que abandonou a meio o curso de Filosofia que frequentava à Nova, na Avª de Berna, Lisboa. O que ainda me espanta é que, em, matéria de nonsense, o que achem graça é aos palermas dos Monthy Python.   

Com um script de 4.000 páginas, saído da pena do discreto argumentista Rosário Teixeira, o cineasat Stanley Kubrick convidou Julia Roberts para o papel de protagonista feminina, mas ela não quis; depois escrutinou o querer da Uma, que é tramada de Thurman, a qual também declinou a oferta kúbricka. Na impossibilidade absoluta de Florbela Queiroz, por compromissos de agenda na cinematografia búlgara independente, onde é animal feroz, Stanley Kubrick virou-se então, algo enfastiado e zabombo, para a puríssima Johanna ter Steege, que me entrou entusiasmada em cena, ainda que ciente que era uma quarta escolha, após as desfeitas da Julia, da Uma e da Floribela Espanca.
 

Um nome grande da cinematografia búlgara independente


Stanley e Johanna ainda fizeram uns takes juntos, tiraram fotos na maior das castidades, e a coisa parecia bem encaminhada quando o trombudo do moço borregou no minuto heróico, dando a coisa por terminada. A rapariga – é a verdade histórica – ficou-se-me sem pinga de sangue, de rastos e para morrer, caindo dois dias de cama numa depressão que só vista.

Diz-se no catálogo das Wilson & Wilson: «o filme de Kubrick, se tivesse acontecido, teria sido o salto para uma carreira internacional de Johanna. A actriz esperou durante oito meses – o tempo durante o qual não pôde aceitar outros trabalhos dado o compromisso que tinha com o realizador – que Kubrick iniciasse a rodagem. Tal nunca aconteceu: segundo a mulher do cineasta, este foi ficando profundamente deprimido com a crueldade da história, o que tornou impossível a realização do filme. E também é claro o facto da “Lista de Schindler”, o filme de Steven Spielberg entretanto estreado, ser um enorme êxito e os produtores não acreditarem ser possível fazer outro filme de sucesso com o mesmo tema do holocausto. Johanna, por sua vez, ficou dois dias sem conseguir sair da cama após ter conhecimento do cancelamento do projecto. Espera, frustração, depressão por causa de expectativas maximais [?], estados contemporâneos, de hoje, aqui e agora».

Jane e Louise Wilson filmaram Johanna ter Steege no Hornsey Town Hall, exactamente o mesmo sítio onde Kubrick a fotografou e lhe fez testes, de actriz e ao ADN, o que também já sucedeu na riquíssima trajectória de vida do pós-graduado Armando, Vara. É espantoso pensar que a carreira – e a vida, no fundo – desta mulher estiveram às mãos de um monstro sagrado e consagrado. E que foi justamente por almejar obsessivamente filmar com o Monstro que Johanna abdicou de tudo, até ao desenlace que, queiramos quer não, pôs termo à sua carreira. Uma carreira que, não sendo brilhante, contava já, ainda assim, com filmes assinados por Robert Altman, István Szabó, Bernard Rose e Bruce Beresford. Depois da birra de Kubrick, a lua de Johanna empalideceu em definitivo. Deu uma acesa entrevista à RTP (serviço público), quase se pegou de cara com um entrevistador, e caiu num vil mas imerecido anonimato.

Tentei agora resgatá-la dessa condição de vítima de Stanley Kubrick pois acho que a história dá que pensar: foram duas mulheres, ademais gémeas, que fizeram com ela o filme possível. Não um sucesso de bilheteira nem um passaporte para o estrelato, mas ainda assim um filme artístico, pretensioso q.b. Johanna merecia mais, não teve. Ninguém tem culpa, longe de nós querer apedrejar o Mestre, que teve toda a legitimidade para não desejar prosseguir conversações fílmicas com a actriz holandesa. Apesar disso, e num tempo em que se fala de assédios de produtores de cinema a actrizes de Hollywood, algumas bem conhecidas e famosas, o caso de Johanna é, de certo modo, exemplar e ilustrativo do poder de um homem nos meandros da 7ª Arte. História de uma mulher, ponto final.
 

António Araújo




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